A arte de andar por aí sem portar um celular

A arte de andar por aí sem portar um celular

Se você parar para pensar, a internet veio resolver problemas que a gente não tinha. Mas é claro que você não vai parar. Pois deveria. A desculpa de estar online o tempo todo pode ser o trabalho, mas pode estar virando uma compulsão. Por um pouco de poesia na vida, que tal desligar o celular?

É até engraçado ver como as pessoas reagem quando estão sem internet. Isso porque pimenta nos olhos dos outros é refresco. Um dos maiores desesperos na vida moderna, meu inclusive, é ficar offline. Pois é para propor este detox digital que o escritor e apresentador do Fim de Expediente, da Rádio CBN, José Godoy, está lançando o livro A arte de andar por aí sem portar um celular.

Pense em poesias da experiência cotidiana e andarilha. É assim que o autor, Mestre em teoria literária pela USP, nos oferece experimentar o cotidiano e o movimento frenético das cidades. Perdido nos descaminhos urbanos, a obra é muito envolvente e atual. Em temas que se perdem em nossa vida diária, como a transformação dos espaços públicos e o trânsito enlouquecedor, os poemas focam na busca de uma paz (que será que existe?) e no enfrentamento dessa realidade.

Aproveite este lançamento da Editora 7 Letras para desligar do mundo um instante. Ao final, o objetivo é focar em você. Enquanto relaxa, conte com um aplicativo que responde suas mensagens para você. Pronto, agora deixe o celular no modo silencioso e desfrute de uma boa leitura. 

Fado

Aos seus olhos
a terra é plana
de suas bordas
despencam os mares.

No seu vestido
o assombro da roda
percebia em azuis
que se fundem.

Chão de cadafalso
ou teto de estribo.
Bomba de sangue
de gravidade interior.

Nosso fado a boiar.

 

Domar a mente

Controlar a mente é como domar
Um elefante depois de várias biritas.

Domar um elefante cercado de ratos
Depois de várias biritas.

Cercado de ratos numa festa de gala dos ratos
Trajado a caráter num smoking de gato.

De Manda-chuva ou Batatinha numa festa de gala.
Controlar a mente não tem nada de festa.

É como uma festa, mas depois da festa.
É quando se recolhe as garrafas e os pratos.

Controlar a mente é como equilibrar pratos.
Equilibrar pratos num surto de delirium tremilis.

Um safári se você quer voltar aos elefantes.
Controlar a mente é participar de um safári com dentes de marfim.

É ter dentes de marfim em Misore.
Não há mais lugar para dentes de marfim em Misore.

Em Misore os elefantes cambaleiam nas ruas,
Bebem nos bares, dão cabeçadas nos automóveis.

Em Misore controlar a mente é dar cabeçadas.
É dar cabeçadas para receber dardos como presente.

Dardos para baixar a euforia para baixar o ímpeto.
Controlar a mente é esperar alguém baixar seu ímpeto.

Os elefantes já usam essa receita.
Você não precisa viajar até a Índia para descobrir isso.

 

Toda praça é um ataque contra a barbárie

Toda praça é um ataque contra a barbárie
Até mesmo a Paz Celestial
Todo homem que protesta na Paz Celestial
Todo homem que se recusa na Paz Celestial
E segue vivo
É um ataque contra a barbárie

A barbárie rascunha a pele
E tatua a memória
Todo homem que pisa a Paz Celestial
Traz a memória de um corpo imolado na Paz Celestial
Assim também na Praça Tahrir, na Praça da Sé

Toda praça que tem um nome se ergue contra a barbárie
Toda praça que dá para o mar
Toda praça que dá para o centro e tem um nome
Repete um clamor contra a barbárie

Até as crianças sabem disso
Mesmo quando chamam uma praça de parque
Toda praça deveria ser um parque na fala das crianças
E toda criança deve saber que uma praça, um parque
Se tem um nome é um ataque contra a barbárie

 

Pernas ligeiras

Décadas e décadas pra colocar algo na cuca
Pra colocar algo na cachola, na moringa
Pra concluir que o importante mesmo é ter pernas ligeiras.
Pernas valentes, com sebo nas canelas.
Pra fugir dos chatos e dos engarrafamentos.
Pra chegar mais rápido em casa
E encher o pote do gato.
Pra chegar mais rápido em casa
E pôr as pernas pra cima.
Pernas ligeiras, pernas valentes
Mais rápidas que o pensamento.
Mais resistentes que o ego
Boas pra saltitar degraus e ver a vista.
Pernas valentes pra esquecer
Pra esquecer as bobagens que se traz na cachola.
Pra flanar por aí com um poema no bolso
Pra flanar por aí sem nada no bolso
Pra flanar por aí.

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