Anjos do asfalto

Anjos do asfalto

Se você acha que não depende de ninguém, pense novamente. Mesmo sem saber, estamos cercadas de anjos. Tenho certeza de que irá se convencer ao ler este texto, que saiu publicado na Vogue. Agradeço à minha amiga Daniela Falcão, diretora de redação, que o cedeu para que eu o compartilhasse aqui no site.

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A história a seguir envolve duas pessoas que conheço. Ela conta o que se passou com Paulo Rios, que trabalha comigo, e Silvana Holzmeister, sua esposa. São eles na foto acima. Silvana é jornalista e editora de moda, e escreveu o texto a seguir. Para ler e refletir.

Anjos do asfalto

Cresci ouvindo minha mãe falar de pessoas que não conhecemos, mas surgem do nada para nos ajudar em um momento difícil, a quem ela chamava de anjos. Talvez por isso a primeira oração que eu e minhas duas irmãs aprendemos foi a do “Anjo da Guarda”. Repito sempre, e não foram poucas as vezes que  senti conforto e segurança, ainda que uma rua completamente deserta sugerisse temor. Em junho deste ano, tive todos os motivos do mundo para acreditar que, sim, nossos amigos invisíveis estão a postos para nos amparar.

Era o final de um semestre emocionalmente extenuante. Mamãe havia falecido em abril, uma semana antes de seu aniversário de 74 anos. Depois de seis anos lutando pela vida, foi vencida pelo câncer que começou pelo intestino e tomou todo o corpo. Não foi fácil ver ruir o principal pilar da família. Sem conseguir chorar, já me sentia doente meia hora depois do enterro. Como somos de Vitória, Espírito Santo, ainda fiquei por lá mais dois dias para ajudar minhas irmãs e meu pai com burocracias e o delicado rito de cuidar dos objetos pessoais.

Para complicar, havia começado a temporada de desfiles verão 2014/15 do São Paulo Fashion Week e tinha de coordenar de longe a equipe que cobria os desfiles para o meu site e, também não podia ficar ausente da sala de aula. Voltei para São Paulo, mas em menos de uma semana, entretanto, o mal-estar virou febre e meu corpo, uma imensa placa vermelha. Os exames, de dengue hemorrágica a aids, não acusaram nada, o que levou os médicos a acreditarem em um processo psicossomático. Triste e debilitada, fiquei de cama. Atravessei o mês de maio me recuperando e colocando em dia os compromissos profissionais.

Por isso, não prestei atenção no aperto que sentia no coração, enquanto atendia os últimos alunos de moda para encerrar o semestre letivo naquela primeira sexta-feira de junho. Por volta do meio-dia, passei em casa para almoçar e como a angustia só aumentava, imaginei que uma rápida sesta poderia renovar a energia. Acordei assustada com o interfone e os dois telefones tocando, todos ao mesmo tempo.

Nos três, a notícia era a mesma. Meu marido, Paulo Eduardo, havia sofrido um acidente e estava na emergência do Hospital das Clínicas. Tremendo, a caminho do HC no tumultuado trânsito de encerramento da semana na capital paulista, meu mundo virou de ponta cabeça. Há tempos ele havia trocado o carro pela bicicleta e, por mais que o breve trajeto entre nossa casa na Vila Olímpia e o emprego, no Jardim Europa, seja quase todo coberto por ciclofaixa, sempre há o perigo de atropelamento. Enquanto dirigia, avisei meus cunhados, que também moram em Vitória, e o escritório da empresária Lucília Diniz, onde Paulo trabalha.

Já no hospital e completamente desorientada, recebi dos médicos o primeiro diagnóstico. Não era acidente, mas também não tinham certeza do que estava acontecendo. Foram descartadas hipóteses de meningite e doenças neurológicas; sabia-se apenas que o teor ácido do sangue indicava a falta de oxigenação do cérebro por um período. Naquele momento, era impossível prever quais seriam as sequelas. Era isso que preocupava a equipe médica e me deixava em pânico.

Não foi fácil vê-lo na cama agitado – apesar de estar em coma induzido –, repleto de tubos e com o rosto deformado como se estivesse sentindo muita dor. E o pior, não pude ficar mais do que cinco minutos com ele.

Enquanto esperava, impotente, do lado de fora da emergência, como por milagre os mesmos bombeiros que haviam resgatado Paulo pela manhã estavam de volta ao hospital, e uma enfermeira indicou para eles quem eu era. Foi então, com o relato deles, mais o relatório da Policia Militar, que consegui reconstruir o que teria acontecido naquela manhã. Por volta das 10h15, meu marido desceu da bike no canteiro central da movimentada avenida Faria Lima passando mal, e perdeu a consciência. Um motoboy que passava no momento prestou os primeiros socorros e o reanimou com massagem cardíaca.

Policiais que faziam a ronda por perto foram rápidos, chamando ambulância e isolando a área para evitar aglomeração. Não sei como, surgiu uma máscara de oxigênio e, logo depois, o Corpo de Bombeiros chegou para leva-lo ao hospital, onde ele deu entrada às 10h45. Comigo, o bombeiro deixou o telefone da moça que se prontificou a guardar a bicicleta e que, depois, confirmou a história.

Logo depois, Lucília enviou seu secretário particular para me auxiliar e pediu ao cardiologista Roberto Kalil Filho que acompanhasse o caso. De madrugada, Paulo foi transferido para a unidade de terapia intensiva, onde os especialistas, ainda sem um diagnóstico preciso, baseavam-se na dilatação comedida das pupilas como um sinal de esperança, enquanto realizavam os primeiros testes em busca de algum descompasso do coração. O estilo de vida do meu marido ao mesmo tempo que dava força ao corpo para reagir era motivo de preocupação. Há quase dez anos, adotara a corrida como esporte e havia se habituado a participar de pelo menos duas maratonas internacionais por ano. Ele estava, justamente, preparando-se para a próxima, em outubro, em Portland, nos Estados Unidos. O treino incluía, além de pedaladas, corridas diárias de 10 quilômetros e natação, com o suporte de uma alimentação saudável; seu último check-up, há pouco mais de um ano, indicava que tudo ia bem.

Na madrugada de domingo fui chamada às pressas no hospital. Apesar do susto, era uma boa notícia. Paulo havia saído do coma induzido e estava estabilizado. Não lembrava de nada e não parava de perguntar, emocionado, o que havia acontecido e o que estava fazendo ali. Reação normal pós-trauma, segundo os médicos. Ainda havia muito a ser pesquisado, mas ele estava falando, raciocinando. E só isso já era motivo para comemorar.

Foram mais alguns dias de hospital com minha sogra e meu cunhado, que vieram de Vitória, dando força. Juntos, comemorávamos cada boletim promissor. Depois de eletros e ecocardiogramas negativos, continuamos os testes com Paulo em casa. Mas já tínhamos um quadro mais concreto. Tudo levava a crer que ele havia tido uma parada cardíaca, mas nossa sorte foi o pouquíssimo tempo que ele ficou sem oxigênio. Sob os cuidados do cardiologista Tarso Accorsi, do Albert Einstein, ele fez vários outros exames, mas foi a angiotomografia de coronárias aliada ao exame de colesterol que desvendou o enigma. Meu marido tem uma taxa alta de gordura no sangue, que é congênita, e isso comprometeu uma das principais artérias. O passo seguinte foi um cateterismo seguido de angioplastia para a implantação de um stent, em agosto. Aos poucos, ele poderá retomar o esporte e levar uma vida normal, mas terá que controlar o colesterol com remédios.

Para mim, foram muitos os anjos que cercaram Paulo naquela manhã de sexta-feira: o motoboy que prestou socorro e sabia fazer massagem cardíaca, os policiais que estavam por perto, a rapidez e eficiência do Corpo de Bombeiros e dos médicos da emergência do HC e o suporte que recebi da Lucília. E acredito que, de longe, minha mãe estava nos protegendo. Só de pensar que poderia ter perdido Paulo pouco mais de um mês depois dela me dá arrepios. Olhando depois minhas mensagens, achei uma selfie que ele me enviou poucos minutos antes de sair de casa, sorridente e saudável. Poderia ter sido uma foto de despedida, mas graças a esses anjos, se tornou a promessa de que tudo ficaria bem novamente.

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