Vamos brincar separados

No carnaval, predominam os excessos e a desordem, para depois a vida voltar ao normal. Leia a coluna de Luiz Carlos Trabuco Cappi publicada no Estadão.

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Mais de 150 blocos e ligas carnavalescas do Rio de Janeiro lançaram um manifesto com a recomendação: “Carnaval 2021 é em casa”.

Assinam o documento blocos tradicionais, como o centenário Cordão da Bola Preta, o Simpatia É quase Amor e o das Carmelitas. Preferiram conscientizar a população de que é preciso evitar aglomeração e manter o isolamento social durante o feriado de fevereiro para evitar a propagação da covid-19.

São raros os precedentes como esse.

O mais importante foi há mais de 100 anos, em decorrência da morte do Barão do Rio Branco.

Chanceler brasileiro desde 1902, José Maria da Silva Paranhos Júnior morreu aos 66 anos, em 10 de fevereiro de 1912, um sábado, uma semana antes do carnaval.

Num primeiro momento, o presidente Hermes da Fonseca se recusou a adiar o carnaval: “Festa do povo, é ao povo que cabe adiar ou não o carnaval”, disse ao vespertino A Noite.

Pressionado pela elite da época, porém, o governo transferiu a festa de terça-feira gorda e o feriado da Quarta-feira de Cinzas daquele mês para os dias 6 e 7 de abril.

Entretanto, faltou combinar com o povo, que foi para as ruas em fevereiro e voltou dois meses depois, ou seja, houve carnaval em dose dupla.

Dessa vez é diferente, a iniciativa está partindo das organizações carnavalescas, blocos e escolas de samba, nas principais capitais do País, como demonstra o manifesto da Sebastiana, nome fantasia da associação dos blocos do Rio de Janeiro.

Oficialmente, entre os dias 13 e 16, não haverá festa nas principais capitais brasileiras.

É dispensável ressaltar o impacto para a economia, principalmente para companhias aéreas, rede hoteleira e bares e restaurantes, sem falar nas atividades econômicas relacionadas diretamente aos eventos do carnaval.

As escolas de samba têm por trás de si toda uma indústria de adereços, alegorias e fantasias.

Mas qual será o efeito psicológico disso, pois o carnaval é um traço da nossa identidade?

Roberto Da Matta, um dos intérpretes do Brasil, no seu livro Carnavais, malandros e heróis, destaca sua importância para a organização da nossa sociedade.

Um dos maiores carnavais da história foi o de 1919, após a pandemia da gripe espanhola, que no ano anterior matara 15 mil pessoas somente no Rio de Janeiro.

Bombaram os Fenianos e os Democratas, grandes sociedades carnavalescas da época; e o Bola Preta desfilou pela primeira vez.

“Quem não morreu da espanhola, quem dela pôde escapar, não dá mais tratos à bola, toca a rir, toca a chorar”, cantava o povo nas ruas.

Da Matta nos mostrou que o carnaval é um rito no qual a sociedade é vista pelo avesso: os pobres viram reis e rainhas, heróis e grandes personalidades; os preconceitos e as hipocrisias são desmascarados.

A crítica aos poderosos é implacável e divertida, na irreverência de incógnitos foliões, muitos dos quais mascarados.

Subverte as hierarquias e um mundo utópico se vislumbra em meio a alegoria, fantasia e sonho.

Nas procissões e desfiles militares, celebra-se a ordem, ensina Da Matta; no carnaval, predominam os excessos e a desordem, para depois a vida voltar ao normal.

Neste ano, porém, tão cedo não haverá volta ao normal.

A pandemia mostrou uma sociedade ainda mais hierárquica, desigual, em que as mulheres, os negros, os pobres e os muito miseráveis sofrem muito mais.

O carnaval seria o momento de inverter essas coisas, com seus pierrôs, colombinas, esqueletos, monstros e máscaras.

“Neste momento, entretanto, estamos todos e todas unidos pela vida. Pedimos que não aglomerem e fiquem em casa”, conclama o manifesto dos blocos.

Pois é, como diz a velha marchinha Até Quarta-Feira, de Geraldo Pereira e Jorge de Castro, neste ano vamos brincar separados.

Texto publicado originalmente em O Estado de S. Paulo.

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