O tempo das rabanadas

Qual é a sua lembrança que melhor traduz o espírito natalino? Leia minha última coluna publicada na revista Veja.

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Os dias que precederam a véspera de Natal foram marcados pela correria habitual desta época do ano.

A agitação não costuma dar trégua: sempre falta um presente para comprar, uma lembrancinha original que nos faz peregrinar por lojas, o preparo do peru da ceia.

Os compromissos são tantos que chegam a ameaçar o verdadeiro espírito natalino, aquele que depende apenas da reunião da família.

Na mesa, nada contra o tender e as comilanças típicas de fim de ano, mas acredito que o resgate da simplicidade natalina encontra na rabanada sua melhor tradução.

Há receitas que vão muito além do alimento.

Elas são responsáveis por sabores e texturas que, mais do que agradar ao paladar, evocam histórias do passado, trazem à tona lembranças de cenas remotas, nos fazem reviver momentos felizes.

Cada um, provavelmente, terá um prato que é muito mais do que a soma e a mistura de seus ingredientes.

No meu caso, a rabanada ocupa o topo da lista da cozinha efetiva.

O perfume doce que emana daquela fatia de pão amanhecido salpicada de canela logo após saída da frigideira me remete à casa dos meus pais, onde a rabanada preparada por minha mãe não podia faltar no Natal.

Embora sua receita tenha, misteriosamente, se perdido com o tempo, ficou, para mim, a memória gustativa daquela calda de vinho do porto que regava generosamente o pão do dia anterior embebido em leite e em ovos.

Sem perder a essência da simplicidade, o pãozinho renascia com nova consistência, em versão de gala.

Frita e adocicada, com um ou outro item local em sua composição, a rabanada tem equivalentes no mundo inteiro.

Os franceses, que costumam usar também o brioche no lugar da baguete, a chamam de “pain perdu”.

Para os americanos, é “French toast”. Em alguns países da América Latina também prevaleceu a influência francesa no nome.

Na Colômbia e no Chile, por exemplo, se diz “tostadas francesas”.

Mas na Argentina é “torrejas”.

Já os britânicos batizaram a iguaria de “eggy bread”.

Para mim, no entanto, as rabanadas têm a ver com a origem da minha família.

Foi a partir de Portugal que o prato chegou ao Brasil ainda nos tempos coloniais e já com o nome de rabanada, como se usava ao norte do rio Mondego, que corta o país ao meio, mais ou menos na altura de Coimbra.

Ao sul os portugueses preferiam uma denominação mais descritiva, “fatia-dourada”, ou o nome que destacava seu poder nutritivo, “fatia-de-parida”, como se fala também em Salvador na Bahia, pois se acreditava que seria benéfico para a produção do leite materno.

Com o tempo, todos aderiram ao termo “rabanada”.

No Brasil, a rabanada se tornou um prato típico do Natal.

É uma tradição cujo sentido original se perdeu nas dobras do tempo.

É possível, porém, que esteja associada ao valor sagrado que o catolicismo atribui ao pão, alimento citado na Bíblia como metáfora para comida em geral.

Jogar fora o pão que não guarda mais as propriedades típicas do produto recém-saído do forno é um pecado, e não só na acepção religiosa.

Crocância não é tudo no pão, e a rabanada está aí para provar.

A rabanada traz toda a alma natalina reunida num alimento. espero que neste ano, faço votos para que o ato de servir rabanadas seja um convite para um retorno ao espírito de simplicidade que a data inspira.

E que 2021 termine em rabanada para acabarmos todos, entre familiares e entes queridos, envoltos em açúcar, canela e muito afeto.

Feliz Natal!

Publicado originalmente na revista Veja.

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