Licença para beliscar

Um snack fora de hora é demasiadamente humano. Leia meu artigo publicado na revista Veja.

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A pandemia colocou no vocabulário cotidiano do Japão a palavra kuchisabishii.

Nas reuniões on-line, em consultórios médicos de Tóquio, nas revistas especializadas ou não, cada vez mais se ouve falar de kuchisabishii.

Antes de nos afogarmos na sopa de letrinhas, o Google nos ensina a pronunciar corretamente: “kutchí-sabichí”.

Literalmente, significa “boca solitária”, se bem que traduções literais em geral não ajudam muito a compreender o sentido das palavras estrangeiras.

O termo se refere, na verdade, ao hábito de comer por puro tédio, enquanto zapeamos a TV ou teclamos no computador.

Quem sente a sensação de não ter nada melhor a fazer durante o confinamento prolongado acaba assaltando a geladeira seguidamente mesmo sem ter fome.

Uma hora pega uma lasquinha de queijo.

Mais tarde, ataca o resto da compota.

Pouco depois, prepara um sanduíche.

Se kuchisabishii fosse um verbo, a sua tradução seria “beliscar”.

É interessante notar, no entanto, que kuchisabishii não tem a conotação negativa que nós, brasileiros, costumamos atribuir ao nosso “beliscar”.

A expressão japonesa não é entendida como compulsão alimentar.

Não designa fraqueza de caráter, nem indício de transtorno.

Para os japoneses, beliscar fora de hora não é condenável.

É algo que faz parte da vida.

É como se dissessem: se você tem vontade de entreter a boca mastigando bobagens sem o devido apetite, então vá em frente, sem culpa, entregue-se ao kuchisabishii.

Melhor assim do que tentar reprimir o desejo, cobrando-se sem trégua uma atitude de determinação férrea em relação ao que come.

Gostei de conhecer a palavra e de saber que a filosofia dos japoneses os estimula a perdoar esse comportamento.

E gostei porque, de certa maneira, me reconheci nessa atitude.

Ouvi na expressão ecos de meus próprios conselhos.

Afinal, minha dieta sempre considerou eventuais derrapadas em direção à cozinha como parte do processo de reeducação alimentar.

É preciso identificar a linha tênue que separa a autocondescendência do perdão que merecemos nos conceder.

É necessário, por vezes, calar o irritante grilo falante — a nossa consciência — que nos exige demais.

Ou seja, depois de saborear um pedaço de bolo no meio da tarde, evite pensar que, só por isso, o regime fracassou.

Nesse caso, você estaria desistindo precocemente de uma rotina saudável.

Seria o equivalente à autossabotagem.

Não resistiu ao bolo?

Comeu antes de pensar?

Tudo bem, aprenda com os japoneses: isso é apenas kuchisabishii.

A pandemia tem cobrado um preço alto.

Por isso, sejamos gentis com nós mesmos.

Lembre-se de que, em tempos de superação, é o.k. não se sentir o.k. — um conceito trazido à pauta na Olimpíada, com a desistência da Simone Biles de concorrer em algumas provas para preservar sua sanidade mental.

Sim, a positividade pode ser tóxica, uma ideia que os japoneses aplicam aos supostos desvios da dieta.

Descontar nossas ansiedades na comilança é uma coisa.

É compulsão.

Outra coisa, diferente, é se permitir snacks imprevistos.

Não por gula desmedida, não por voracidade excessiva, mas apenas para atender a recaídas demasiadamente humanas.

Publicado originalmente na revista Veja.

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