Gastronomia perdida

Em busca de sabores esquecidos que resgatam emoções. Leia minha última coluna publicada na revista Veja.

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Em Ponte de Lima, vilazinha no norte de Portugal, antropólogos pesquisaram receitas que, por este ou aquele motivo, foram deixando o repertório gastronômico daquela região fronteiriça com a Galícia, na Espanha.

São pratos dos tempos medievais.

Pataniscas de farinha de milho, chouriço de língua de porco, cabidela de cabrito, para citar exemplos.

Alguns nomes até sobreviveram aos séculos, mas o preparo típico dos tempos feudais se perdeu nas fumaças e vapores das rústicas cozinhas com forno a lenha, de onde saíam iguarias imemoriais.

Pois eis que esse passado remoto está agora sendo resgatado.

Chefs locais foram convocados para recriar os cardápios que despertaram o apetite de cavaleiros, súditos e reis.

Um livro com 100 daquelas receitas será lançado neste mês, com conteúdo disponível na sequência em um portal na internet, uma simpática iniciativa que democratiza o conhecimento.

A estratégia objetiva promover o turismo gastronômico.

Pega o visitante pelo paladar, o sentido que se conecta diretamente com as emoções.

Há mais em comum entre o paladar e o cérebro do que se imagina.

A lembrança de um prato provoca senso de pertencimento e, a partir da valorização das individualidades, promove uma identidade coletiva.

Proust, por exemplo, acreditava não ser possível acessar o próprio passado por meio da inteligência.

Só a memória involuntária, acionada por algum elemento, seria capaz de recuperá-lo.

Daí a famosa cena da madeleine, tão clássica que foi absorvida pela cultura pop, tendo sido retratada até no desenho Ratatouille, da Pixar.

Não é preciso ter lido Em Busca do Tempo Perdido para saber que, ao provar o bolinho após mergulhá-lo em uma xícara de chá, o protagonista evoca a sua infância na fictícia Combray.

Cada um de nós sabe os pratos que têm o condão de despertar nossas melhores memórias.

Eu sinto falta do miolo de boi à milanesa, receita da dona Floripes, minha mãe.

Os miolos empanados, com casquinhas crocantes e macios por dentro, também não ficam atrás.

Já provei outras receitas depois de adulta, mas nenhuma que se aproximasse do que eu comia em casa.

E não há como esquecer da geleia de mocotó feita na “Doceira” Pão de Açúcar, em porções que vinham em copinhos de plástico.

Acho que hoje uma simples colherada dessa geleia teria o mesmo efeito da madeleine de Proust.

Não temos mais acesso fácil a alguns ingredientes com que se deliciaram nossos antepassados.

Também não dispomos do mesmo tempo para preparar uma refeição com a calma que às vezes ela exige.

Ah, e como faz falta a avó ao lado, ensinando-nos truques e macetes dos mais deliciosos quitutes.

Tudo isso é verdade, sim.

Mas não quero soar saudosista, suspirando por um tempo que não volta mais.

Gosto de olhar para a frente.

Na pandemia, não foram poucos os que aprenderam a cozinhar a partir de dicas em aplicativos ou sites.

Se não temos mais a Dona Benta, podemos tentar a ajuda da Alexa, da Siri ou de qualquer outra inteligência artificial.

Não é a mesma coisa?

Talvez não seja mesmo.

Mas, em vez de lamentarmos o molho derramado, façamos como os chefs de Ponte de Lima, que usam as modernas tecnologias a favor dos sabores de outrora.

Publicado originalmente na revista Veja.

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