Diplomacia culinária

O fim da intolerância começa na cozinha. Leia minha última coluna publicada na revista Veja.

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O avanço da vacinação coincide com a chegada do fim de ano.

Mas ainda há preocupação sobre quem poderá circular livremente.

Uma coisa é certa. Na Grã-Bretanha, o macarrão italiano não entra.

Com o Brexit, muitas mercadorias deixaram de circular livremente entre a terra da Rainha e o restante da Europa desde janeiro.

Produtos alimentícios que atravessam o Canal da Mancha agora devem apresentar certificados e checagens que inviabilizam muitos negócios.

Assim, de uma hora para outra, toda a população da Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte ficou com dificuldades de obter a massa importada da Itália.

Claro que a solução foi fazer o próprio macarrão com os ingredientes locais.

Mas será que o resultado no prato pode ser chamado de macarrão?

De início, as substituições decretaram uma importante baixa, a da pasta al dente.

A troca do trigo de grano duro pela variedade disponível não permite que a pasta fique firme, alteração que compromete inúmeros preparos.

Um golpe, portanto, para fãs da gastronomia italiana e donos de restaurantes.

E um exemplo de como, cada vez mais, está difícil proteger a culinária típica em um mundo globalizado.

Na Espanha, por exemplo, a popularidade da paella está trazendo enorme dissabor.

Isso porque, em todo o mundo, todos têm sua versão do prato – que ganhou até emoji próprio.

Mas em Valência, onde conquistou o reconhecimento como patrimônio cultural imaterial pela Unesco, ninguém aprova improvisos que mudem a receita original.

Não há valenciano que admita nada que saia do descrito na Wikipaella – associação fundada para conhecimento e reconhecimento do prato autêntico – como únicos ingredientes aceitáveis: arroz, vegetais, carne de frango, coelho ou frutos do mar.

Portanto, quando o chef e estrangeiro Jamie Oliver apresentou sua variante com chorizo, só faltou protestos fecharem as ruas com barricadas em chamas.

Mesmo diante da reação, Oliver manteve a receita em seu site.

Ele acrescentou apenas uma pequena nota, em que defende seu direito de fazer a paella do jeito que quiser.

No que está certo.

Seja para saciar a fome, recepcionar ou apenas divertir quem se arrisca nas panelas, a liberdade de expressão na cozinha não deve ser cerceada.

Receitas são orientações, que adaptamos aos ingredientes e condições encontradas.

Alimentar-se tem a ver com prazer, com satisfação pessoal e coletiva.

Imagine ter que responder às autoridades toda vez que trocar, tirar ou acrescentar alguma coisa do feijão tropeiro, por exemplo.

No caso de eu colocar cubinhos de banana frita no preparo, devo temer a chegada da PM mineira?

Uma intolerância assim tornaria impossível a existência de iguarias que você nem acredita serem, elas próprias, puras invencionices.

A palha italiana, o doce feito com leite condensado e biscoito maisena, só para começar, nunca foi vista na Itália, de onde supostamente teria vindo.

Esta delícia é a tradução local do salame di cioccolato, onde chocolate e pedaços de biscoito são misturados e modelados em formato de cilindro, nunca de tabuleiro.

Sabe o filé a parmegiana?

Também desconhecido no Velho Mundo, trata-se de criação paulistana, muito provavelmente de um imigrante italiano ou descendente.

Até o quindim, quem diria, é coisa de brasileiro.

E pizza de sushi, esfiha com requeijão e hot dog com purê de batata são coisa nossa sim, também, já que nada aproxima mais que o apetite.

Publicado originalmente na revista Veja.

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