Amor aos restaurantes

Eles desempenham o papel de agregadores da sociedade. Leia minha coluna publicada na revista Veja.

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Mestre em encapsular grandes pensamentos em pequenas frases, Millôr Fernandes escreveu certa vez que “gastronomia é comer olhando pro céu”.

Ele se referia, claro, à experiência sublime de provar um prato tão bom que não haveria como não agradecer aos deuses.

Mas hoje, quando os restaurantes começam a reabrir, bem que poderiam, quando possível, servir seus clientes ao ar livre.

Ai, que saudade dos restaurantes!

Pela comida, sim, mas não só.

Sinto falta do papel agregador que eles tão bem representam.

Quantas cenas inesquecíveis protagonizamos em suas mesas!

Celebrávamos amizades, negócios, alianças republicanas.

Quem se lembra da “turma do poire” do deputado Ulysses Guimarães, que, enquanto engendrava a Constituição de 1988, se reunia em torno de uma boa garrafa de licor de pera no Piantella de Brasília?

Restaurantes são teatros onde esquetes são encenados.

Lembro de amigos de adolescência que, no Rodeio, catapultavam bolinhas de manteiga no teto baixo de madeira e se divertiam em adivinhar em quem cairiam – um pastelão politicamente incorreto explícito, impensável hoje.

Restaurantes são também palcos de histórias de amor — eu mesma fui cupido, embora nem sempre bem-sucedida.

Vivi momentos mágicos, em São Paulo, entre amigos no La Tambouille e no A Bela Sintra, passei tardes de domingo agradáveis no Barbacoa, desfrutei noites descontraídas no Gero.

O espaço não é suficiente para citar todos os meus preferidos, mas devo mencionar os japoneses, o Geiko-San, com sua sóbria elegância, e o moderno Kitchin.

Fui convidada por duas edições do Comer & Beber de VEJA SÃO PAULO a entregar o prêmio de “o melhor da cidade”, em que tive oportunidade de observar de perto o orgulho dos donos de restaurantes.

É com alegria, portanto, que acompanho a reabertura dessas casas de confraternização.

Trata-se, afinal, da retomada de uma história fascinante, associada à civilidade.

Na segunda metade do século XVIII, um francês chamado Boulanger resolveu abrir, em Paris, uma casa que servia refeições.

Escreveu na entrada um versículo adaptado do Evangelho de São Mateus: “Vinde a mim todos os que sofreis do estômago, que eu voz restaurarei”.

Mais tarde, casas similares — dedicadas a “restaurar” a energia dos clientes — passaram a ser chamadas de restaurantes.

O primeiro nos moldes contemporâneos surgiu pouco depois, em 1782.

Era o La Grande Taverne de Londres, parisiense, sob a direção do prestigiado Antoine Beauvilliers.

Lá, pela primeira vez no mundo, as pessoas, acomodadas em mesas, pediam pratos individuais de um cardápio.

Hoje a situação é tão arraigada

em nossa cultura que até parece ter sempre existido.

Os restaurantes parisienses ganharam impulso logo em seguida, a partir da Revolução Francesa, em 1789.

Com a queda da aristocracia, cozinhas particulares foram desativadas.

Sem trabalho, os chefs começaram a abrir os próprios restaurantes, de olho na nova freguesia.

Hoje, vejo, apreensiva, imagens de pessoas se aglomerando na frente de bares, numa ânsia de voltar a frequentá-los sem tomar os devidos cuidados.

É uma atitude compreensível, mas temerária.

Enquanto o “velho normal” não desbanca o “novo anormal”, a cautela é o melhor tempero.

Publicado em VEJA de 29 de julho de 2020, edição nº 2697

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