A pequena notável

Nas ceias de fim de ano, cuidado ao falar da uva passa. Leia meu artigo publicado na revista Veja.

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O cardápio das ceias de Natal e de Ano Novo não deveria ser alvo de polêmica.

As ocasiões pedem conciliação, não desarmonia.

Mas os pratos podem, de repente, virar o centro das atenções, provocando opiniões divergentes, para apreensão de quem pilotou o jantar – quem cozinha sabe o que estou falando.

O chester costuma passar ileso pelos convivas.

A farofa em geral faz figuração discreta.

O arroz, se for soltinho, também não preocupa a anfitriã

Eliminados os candidatos do grupo principal, o pomo da discórdia é quase sempre a enrugadinha uva passa.

Pomo, como se sabe, é aquela maçã que, segundo a mitologia grega, foi oferecida pela deusa Discórdia, dando início a uma acirrada disputa entre as divindades que orbitavam o rei de Troia.

Pois da mesma maneira que a fruta da Antiguidade, a moderna e ressecada uva passa tem potencial desagregador.

Tão pequena e tão polêmica!

Com presença clássica em pratos como panetone, manjar, arroz e farofa, ela pode causar sérios problemas durante a ceia.

Geralmente, quem abomina a frutinha não se contenta com a possibilidade de ciscá-la discretamente, empurrando-a para um canto do prato, como se a colocasse no “cantinho da reflexão”.

O pessoal que vota contra a uva passa quer bani-la definitivamente de qualquer menu desta época do ano – e até do ano inteiro.

Fora da mesa e diante da tela do smartphone, alguns se comportam como verdadeiros haters de uva passas, como se elas representassem o que há de pior na culinária.

Os comensais, da direita esclarecida à esquerda democrática, podem aparar arestas partidárias.

Veganos e carnívoros podem se tolerar momentaneamente.

Se a religião surgir como um tópico de conversa, crentes e descrentes, movidos pelo espírito de confraternização das festas de fim de ano, podem se dar as mãos.

O que parecem irreconciliáveis são os pareceres discrepantes sobre a uva passa.

Quem gosta, adora.

Quem não gosta, odeia.

E não se fala mais nisso!

Diante dos mais radicais, não adianta argumentar com base nos benefícios que a uva passa traz para a saúde – ela é antioxidante, rica em fibras e tem alto teor de vitaminas e minerais.

Nada disso, no entanto, é suficiente para convencer quem quer se livrar da frutinha.

A uva passa pode ser feinha, coitada, mas, como diz o sábio provérbio, “beleza não se põe à mesa”.

Mais importante do que a aparência é a fartura, algo que, segundo a tradição, a uva passa atrai para aqueles que a consomem em dias de festa.

O aspecto rio não pode ser simplesmente descartado, mesmo que hoje em dia não seja mais levado ao pé da letra.

A uva passa, em vez de desagregadora, deveria ser vista como um pequeno monumento à tolerância.

Nos próximos dias, portanto, antes de criar caso por causa da uva passa, pense na sua saúde e no espírito de paz e concórdia que, sobretudo nestes tempos de provação, deve prevalecer no período natalino.

Publicado originalmente na revista Veja.

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